Uma águia de asas
partidas
Ele era um jovem abastado. Herdara dos
pais um palácio que se erguia na colina de Acra. Seus servos o amavam e serviam
com lealdade, atendendo-lhe todos os desejos.
Habituara-se a dormir em seu leito de
ébano e marfim, onde se permitia devaneios e dava vazão a muito sonhos.
E quantos sonhos tinha! Amava as corridas
de bigas, quadrigas, ansiava pela ovação do povo, que o conduzia quase ao
êxtase.
Via-se, por entre a multidão, recebendo
flores aos pés e seu nome aclamado repetidas vezes.
Possuía taças de rica ornamentação, nas
quais bebia os vinhos gregos e latinos, louros e rubros como as auroras.
Tinha arcas abarrotadas de pedras raras,
diamantes, rubis, safiras e pérolas sem conta.
Era detentor de rebanhos e de muitas
vinhas. Em Betânia, possuía outro palácio, onde costumava receber amigos para
festas.
Cuidava do corpo com massagens de óleos e
unguentos raros. Vestia-se com tecidos de linho leve. Nele, tudo respirava
juventude, beleza e glória.
Entretanto, embora parecesse nada lhe
faltar, sentia sede de paz. Vazio estava o coração.
Vez ou outra, a melancolia o abraçava. É
como se depois das vitórias, dos banquetes e das honrarias, o mármore, o
marfim, as jóias, tudo lhe soasse frio, gélido.
Ansiava pela paz. Como conquistá-la? Onde
buscá-la?
Naquele cair de tarde, quase noite, em que
os raios de luar já dançavam sobre a Terra, o príncipe procurou o Rabi. Jesus
acabara de abençoar as crianças, quando o moço rico se aproxima.
O Encontro singular lembrava um eclipse
solar ao nascer do sol. O vale prostra-se aos pés da imponente montanha e cheio
de ansiedade, indaga:
Bom mestre, que bem devo praticar para
alcançar a vida eterna?
E o diálogo deve ter prosseguido mais ou
menos assim:
Por que me chamas bom? Bom somente o Pai o
é. À tua pergunta, respondo: cumpre os mandamentos, isto é, não adulterarás,
não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honrarás teu pai e tua
mãe.
Tudo isso tenho observado em minha
mocidade. No entanto, sinto que não me basta. Surdas inquietações me atormentam.
Labaredas de ansiedade me consomem. Faltava-me algo!
Então - propõe-lhe a Luz - vende tudo
quanto tens, reparte-o entre os pobres. Vem, e segue-me!
A proposta o penetrou como um punhal
afiado. Onde já ouvira aquela voz? Não lhe parecia desconhecida. E aquele olhar
que o fitava, cujos olhos mais pareciam duas estrelas engastadas na face pálida
que o fitavam?! Que doce magnetismo.
A ordem, a meiguice daquele homem ecoava
em seu espírito. Ele era uma águia que desejava alcançar as alturas. E o Rabi
lhe dizia como utilizar as asas para voar mais alto.
O rapaz ficou mudo por alguns instantes.
Suas mãos frias revestiam-se de suor. Os lábios pareciam selados.
Por fim, vencendo a própria resistência,
murmurou:
Senhor, deixa antes que eu vá competir em Cesaréia. Disputarei
os jogos... Colherei os louros da vitória para Israel. Voltarei depois...
Não posso esperar, foi a resposta. Hoje é o momento
para ti. Esta é a hora. Nem amanhã, nem mais tarde.
Agora, o jovem parece conseguir
desembaraçar as idéias e explica, num jorro de palavras:
Adquiri recentemente aos partas quatro
cavalos soberbos, brancos, velozes como dardos. Paguei uma fortuna por eles, o
preço de uma casa, setecentos denários! Conduzirão minha quadriga no circo, nos
próximos dias, em
Cesaréia. Guardo a certeza que serei vencedor, porque também
contratei escravos que me adestraram. Mestre, compreendes o que é tudo isto?
Não temo dar o que tenho: dinheiro, ouro, gemas, propriedades, títulos.
A voz do Divino Pastor o interrompe:
Dá-me a ti próprio e eu te oferecerei a
ventura sem limite.
Eu quero, mas...
Pela sua mente em turbilhão, passaram as
cenas das glórias que conquistaria. Os amigos confiavam nele. Tantos esperavam
a sua vitória. Israel seria honrada com seu triunfo.
Sim, ele podia renunciar aos bens de
família, mas ao tesouro da juventude, às riquezas da vaidade atendida, os caprichos
sustentados...? Seria necessário renunciar a tudo?
A águia desejava voar, mas as asas estavam
quebradas...
Recorda-se o jovem que os amigos o esperam
na cidade, para um banquete previamente agendado. Num estremecimento, se ergue:
Não posso! - murmura. Não posso agora. Perdoa-me.
E afastou-se a passos largos. Subindo a
encosta, na curva do caminho, ele se deteve. Olhou para trás. Vacilou ainda uma
vez.
A figura do Mestre se desenha na paisagem,
aos raios do luar. Luz. Indecisa, a alma do moço parece um pêndulo oscilante. A
águia ainda tenta alçar o vôo. O peso do mundo a retém no solo. Ele se decide.
Com passos rápidos, quase a correr, desaparece na noite.
Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas
narram o episódio e dizem de como ele se retirou triste e pesaroso. Nem poderia
ser diferente: fora-lhe dada a oportunidade de se precipitar no oceano do amor
e ele preferira as areias vãs do mundo.
Uma semana depois, preparavam-se as bigas
e quadrigas para a importante competição em Cesaréia. As trompas
e as fanfarras anunciam as festas públicas. Apostas são feitas sobre as mesas
dos cambistas. Os ases, as preferências, as cores.
Tudo fala de triunfo, alegria. Ao sinal
convencionado, sob estrondosa ovação, partem os corcéis fogosos, puxando os
carros e seus condutores.
Chicotes estalam no ar, mãos firmes nas
rédeas, suores, ansiedade. E então, na tarde poeirenta, numa manobra infeliz, a
quadriga vira, um corpo tomba e os cavalos, em disparada, despedaçam-no.
A corrida prossegue. O povo elege logo
outro para honrar, o vencedor. O moço sente a vida se lhe esvair. O sangue
empapa o solo. Os escravos o acodem, retiram-no da pista.
Ele não mais distingue as pessoas. O
vozerio da turba parece distante, inalcançável. Uma névoa o envolve. Abandona o
corpo estraçalhado, sem vida.
Dois braços amigos o acolhem. Na acústica
da alma, ele ainda escuta: Vem e segue-me. Hoje... Não posso esperar.
A águia demoraria um tempo maior para
alçar o vôo às alturas que sonhava. Os séculos se dobrariam. O moço rico
retornaria muitas vezes ao cenário do mundo até conseguir o seu intento.
Beijos meus cheios de luz, paz, amor, fé e esperança!
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"Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária
Para aceitar as coisas que não podemos modificar,
Coragem para modificar aquelas que podemos,
E sabedoria para distinguir umas das outras".