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terça-feira, 7 de agosto de 2012

O HABITANTE DA CAIXA DE FÓSFOROS por Frei Fabiano Aguilar Satler, ofm


 

O HABITANTE DA CAIXA DE FÓSFOROS
  por Frei Fabiano Aguilar Satler, ofm

Um dos desafios da missão além-fronteiras é o contato com uma realidade cultural, política e religiosa diferente daquela no meio da qual crescemos e fomos educados. A facilidade com que enxergamos e analisamos essa realidade cultural a partir da nossa própria matriz cultural é um risco constante, não importa o quão preparados estejamos. Ao nos transportarmos para realidades culturais diferentes, uma atitude importante é não carregarmos preconceitos, abandonarmos imagens e juízos pré-concebidos - e, normalmente, errôneos - do lugar para onde nos dirigimos. Garanto-lhes que falar e escrever sobre isso é bem mais fácil do que viver essa convicção.

Em Moçambique, por exemplo, um primeiro preconceito errado que podemos trazer é a imagem de uma nação negra, onde os seus membros têm como religião o culto familiar prestado aos seus antepassados. De fato, a população negra é a maioria da população e o cristianismo representa apenas uma parcela da população. Mas, como chama a atenção a presença da população de origem árabe e indiana, junto com as suas duas religiões: o islamismo e o hinduísmo. É uma realidade diferente para quem está acostumado a mover-se no meio de um ambiente majoritariamente cristão. Somos confrontados com questionamentos que, antes, não nos eram colocados. Sentimos bem perto de nós o confronto latente entre os diversos credos religiosos. O que fazer quando cada credo religioso reclama categoricamente para si a exclusividade do caminho sagrado?

As religiões, com os seus credos, suas formulações e suas liturgias parecem conseguir o impossível: fazer Deus do tamanho de uma caixa de fósforos. Aquele que, de acordo com a nossa fé cristã, é o criador de todo o cosmos - e você já parou para imaginar a escala de grandeza do cosmos? - fica reduzido ao tamanho das nossas formulações e desejos, do tamanho de uma caixa de fósforos. Aprisionado dentro desse minúsculo objeto, já não se trata mais de Deus, mas de ídolos aos quais nos prostramos em reverente idolatria. Felizmente, o mistério não se deixa aprisionar. Escapa-nos sempre.

Nós, cristãos, ao professarmos a nossa fé na comunidade Una e Santa de amor que é a Trindade, devemos deixar sempre aberto, em nossa mente e em nosso coração, o espaço para que Deus seja Deus e não um simples prisioneiro das nossas formulações dogmáticas. "Deus é mais", repete um bordão da moda. Precisamos passar do bordão à compreensão dessa verdade profunda com todas as suas conseqüências.

Não que a liturgia, os credos e a teologia não nos levem a experienciar a sombra do mistério que é Deus. Levam-nos. Quem não experimentou um pouquinho da eternidade e da verdade sobre nós mesmos, ao ler os poemas do Alberto Caeiro - leiam "O Guardador de Rebanhos" - , ao ouvir o canto de Taizé ou a música barroca de Bach? Quem não consegue comungar as palavras de Jesus que comparava o reino com uma grande festa e banquete ao participar de uma eucaristia - aqui em África de um modo especial - com a sua música, dança e cor? Somos criaturas situadas historicamente, dotados de sentidos, de reflexão, de desejos. E é com esses instrumentos - sentidos, paixões, reflexão - que nos aproximamos do mistério que é Deus. Não somos pessoas desencarnadas.

A Encarnação do Verbo na fé cristã lembra-nos exatamente isso: Deus se faz pequeno, à nossa medida. Mas faz-se pequeno para nos elevar, para nos libertar das falsas imagens de Deus que nos prendem ao chão e que nos escravizam mutuamente. E esse foi um dos motivos que levou Jesus à morte: a liberdade de Jesus frente à religião judaica. Contra aqueles que sustentavam que o único lugar de adoração a Deus era o Templo em Jerusalém, Jesus diz à samaritana: "Vem a hora em que nem sobre esta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai..." Contra os legalistas fariseus que colocavam a lei acima do homem, Jesus proclama: "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado". Para aqueles que o acusam de não seguir os costumes de purificação, Jesus sentencia: "Nada há no exterior do homem que, penetrando nele, possa torná-lo impuro..." Longe de Jerusalém, Jesus podia contemplar a paisagem e exclamar: "Olhai os lírios, como não fiam nem tecem..." Mais fundamental, Jesus proclamava que o Pai que está no céu faz brilhar o sol e cair a chuva, tanto sobre os bons como sobre os maus. E, sendo Deus, poderia ser diferente?

O pecado capital de qualquer caminho religioso - do judaísmo do tempo de Jesus ao cristianismo de nossos dias, passando pelas grandes tradições religiosas não cristãs - consiste em apoderar-se de Deus e do Sagrado. Fico a imaginar o riso sonoro de Deus ao contemplar tal pretensão humana.

Dostoïewsky conseguiu captar, com extrema subtileza, essa pretensão da religião cristã, em particular. Em Os Irmãos Karamazov ele nos conta a estória do Grande Inquisidor. A cena passa-se na Sevilha do século XVI, quando se queimavam diariamente hereges na fogueira "para a maior glória de Deus". Nessa altura, Deus quis aparecer por um instante ao povo sofredor e miserável. Voltou à terra na mesma forma humana que teve nos seus trinta e três anos de vida. Ele surgiu lentamente, sem fazer-se notar, mas - coisa estranha - todos o reconheceram. Caminhava em silêncio, seus olhos emanavam a luz e despertavam amor entre os homens. Os doentes, ao lhe tocarem, eram curados. As crianças atiravam-lhe flores e cantavam "hosana!" Uma criança morta retornou à vida em frente à catedral. O povo, estupefato, grita e chora. Mas, nesse mesmo momento, passa em frente à catedral o próprio cardeal, o grande inquisidor. Presenciara toda a cena. A um gesto seu, ordenou que os guardas prendessem aquele que retornara. À noite, na prisão, o grande inquisidor pergunta: "És tu?... Não tens mais o direito de acrescentar coisa alguma ao que já disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Outorgaste-nos, solenemente, o direito de fazer e desfazer, e está claro que não podes pensar, por um momento sequer, em no-lo tirar agora. Com que fim, vieste, portanto, estorvar-nos?" E conclui: "Se há alguém sobre a terra que merece a nossa fogueira, esse alguém és tu. Dixi".

Cada tradição religiosa, com raras exceções, tem o seu grande inquisidor, seus procuradores, aqueles que falam em seu nome. Eu mesmo, ao escrever estas palavras, pareço contradizer-me. É que pareço fazer as vezes de advogado do Sagrado, saindo-lhe em defesa. Não, definitivamente, Deus não necessita das minhas palavras ou formulações. Deus, impassível, segue sendo Deus, independente do que dissermos a respeito d’Ele ou da forma como rezamos ou deixamos de rezar a Ele. Quem necessita destas palavras sou eu.

Libertando-me das falsas imagens de Deus que carrego em mim, a vida torna-se mais leve e humorada, a oração converte-se em diálogo espontâneo, os relacionamentos mútuos modificam-se. Em uma palavra: transformo-me. E assim, a religião cumpre em minha vida o seu papel capital: a conversão em direção à comunhão com Deus e com a criação inteira, do humano ao verme que rasteja pela estrada.

Acredito que uma das perguntas que podemos fazer para julgar a autenticidade de experiências religiosas que, dizem algumas pessoas, mudaram as suas vidas é: você se tornou mais tolerante e amoroso com pessoas que não partilham a mesma experiência religiosa? Por isso, pense duas vezes antes de dizer que Deus mudou a sua vida. Já ali, na próxima esquina, você irá descobrir que a conversão do coração é um percurso um pouco mais longo do que imaginamos à primeira vista: tem a distância exata dos anos da nossa vida.




Beijos meus cheios de luz, paz, amor, fé e esperança!  

 






Um comentário:

  1. "...a oração converte-se em diálogo espontâneo..." é isso!
    qdo aprendi td ficou mais leve !

    BeijO de Nana .
    Nana Pinho Em Cores

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"Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária
Para aceitar as coisas que não podemos modificar,
Coragem para modificar aquelas que podemos,
E sabedoria para distinguir umas das outras".

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