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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

"Pérolas perdidas"





Perolas perdidas


Recebo, via Internet, um pequeno texto contando uma história que, a princípio, não me diz nada. Quando meu dedo já se dirigia à tecla DEL, uma experiência vivida no dia anterior se mistura ao texto e, assim, de repente, me vejo numa viagem a memórias que nem me pertenciam, fazendo parte, talvez, do que Jung chamava de “inconsciente coletivo”, esse conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhados por toda a humanidade.
Segundo Jung, todos temos esse reservatório de lembranças latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. A pessoa não se lembra das imagens de forma consciente, mas elas criam uma espécie de “gatilho” que desencadeia a predisposição para reagir ao mundo da forma como nossos antepassados faziam. O que nos animais é instinto, para nós, humanos, é a herança da sabedoria dos milênios.
Quantas e quantas vezes vivemos experiências assim, de “reconhecimento”, a partir da memória, da palavra, do talento do outro? Daí a importância da Arte, da Comunicação, da Partilha que não tem nenhuma intenção “pedagógica”, professoral, nem se pretendem ser uma “lição de moral”. Sem arrogância, pura e simplesmente colocam-se à disposição do outro como riquezas que já não nos pertencem, um “tesouro coletivo” que vindo do inconsciente, enriquece a sabedoria humana como um todo, tornam-se um patrimônio de toda a humanidade..
Foi a sensação que tive ao ler o texto, fazendo, por ele, conexão com um acontecimento banal vivenciado horas antes, e mergulhando numa viagem pelo meu reservatório de lembranças, deixando vir à tona experiências que foram fluindo sem censura, dos olhos para o coração, do coração para a imaginação, da imaginação para os dedos, dos dedos para o teclado e do teclado para a partilha.

Foi assim...

Por muitos anos, na minha infância, vivi numa casa que tinha um piso de tábuas largas, com fendas e gretas pelas quais costumavam cair, para debaixo do assoalho, um espelhinho, um pente, uma moeda, um botão, uma miçanga, mil coisas assim, que ficavam perdidas na escuridão do porão.
Meninos curiosos como eu gostavam de deitar-se no chão e ficar olhando pelas gretas, perscrutando os mistérios que ali se escondiam. De vez em quando um raio de sol driblava cortinas e janelas fechadas e penetrava lá embaixo. Então, coisas esquecidas e perdidas cintilavam, misteriosas, convidativas, sugerindo que pequenos tesouros estavam lá, à espera de quem tivesse coragem para buscá-los.
Mas o porão era um lugar proibido às crianças, território perigoso, segundo minha avó, abrigo de insetos venenosos, cobras, dragões e fantasmas.
Porém, um dia, uma pérola soltou-se de um pingente da minha mãe, resvalou numa greta e caiu no porão. Tive, então, autorização para descer até lá, em busca da jóia perdida.
Foi difícil abrir o alçapão, fechado há anos e anos. Mas, depois de muito esforço, abriu-se a portinhola que revelava uma velha escada.
Desci, trêmulo, com o coração na boca e uma vela na mão...
Aos poucos meus olhos se habituaram à escuridão e pude ver, ao rebrilhar trêmulo da vela, um mundo misterioso que, por anos, eu só pude vislumbrar pelas gretas do assoalho.
O coração aos saltos ia registrando dezenas de coisinhas perdidas e reencontradas: aquela bolinha de gude colorida, aquele alfinete dourado, aquela medalha, aquele botão de madrepérola, a pérola da minha mãe...
Mil surpresas escondidas, acumuladas, esquecidas por anos a fio e que a casualidade de uma jóia perdida fizera redescobrir.
Ao subir de volta, trazia comigo muito mais que a pérola da minha mãe...
Hoje, menino crescido, continuo olhando pelas gretas da vida como olhava o fundo do assoalho daquela casa da minha infância, cheio de frestas e promessas.
Vislumbro, por vezes, o rebrilhar de alegrias e carinhos que julgava perdidos para sempre. Cintilam para mim, misteriosas e convidativas, as luzes de momentos de ternura que foram caindo pelas gretas dos dias, e se perdendo no fundo do porão da vida.
A gente costuma perder esta beleza toda pelo cansaço, pelo peso das obrigações que chegam com a vida, pelas decepções e fracassos que tiram de nós a disposição infantil de perscrutar mistérios.
Por causa do adulto que nos tornamos, muitos tesouros acabam esquecidos nas gretas do tempo.
E aí, vem a acomodação, o medo, fazendo do coração um território perigosamente previsível, cheio de venenos, de rancores, onde fantasmas arrastam correntes e dragões cospem fogo e mágoa nas nossas esperanças.
É preciso, às vezes, perder uma pérola, para que a busca por ela nos faça reencontrar nossos tesouros mais preciosos.
A Oração Inaciana me ensinou a abrir o alçapão da alma, por vezes enferrujado pela falta de uso, descer aos porões do meu espírito, pelos degraus do coração, vela na mão, olhos atentos ao rebrilhar das coisas e sentimentos perdidos, das saudades de mim mesmo.
Naquilo que rebrilha, Deus fala...
Desde então, todos os dias, cultivo o tempo de ouvir. Permito que o menino em mim espie por entre as tábuas do assoalho do cotidiano, redescobrindo com alegria, às vezes com sustos, pequenas coisas perdidas, indispensáveis ao tempo do amor, necessárias ao risco de viver a vida com seus desafios e exigências.
O porão da memória, inesgotável reservatório de lembranças, minhas e de tantos, guarda tesouros dos quais não posso abrir mão, sob pena de passar a vida apenas olhando pelas frestas dos dias, temeroso, frágil, impotente, intuindo o rebrilhar de oportunidades e sentimentos perdidos, esquecidos, atrofiados.
Aprendendo a ouvir um Deus que fala na memória do tempo, em busca de uma pérola perdida, tal como o mercador da parábola (Mateus 13, 45-46), acabei encontrando o meu maior tesouro...

Eduardo Machado
fonte aqui

Beijos meus cheios de,
luz, paz, amor, fé e esperança!



2 comentários:

  1. Oi Rô!
    Quanto tempo menina! Estava com saudades de vc!
    Saudades das suas palavras!
    Que história linda viu? Me transportei no tempo e fui para lá na minha infância...
    É verdade o que ele diz a respeito da vida, é preciso olhar nas frestas, para acharmos aquilo que perdemos...
    E perdemos não porque queremos, mas pq andamos depressa demais...
    É preciso andar devagar e saborear o caminho da vida, analisar, redescobrir, reinventar...
    Eu estou nessa fase: fase do redescobrimento!

    Bom fim de semana!

    bjos

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  2. Sou apaixonado por tudo que escreve e descreve!

    Um beijo enorme e um ótimo fim de semana!

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"Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária
Para aceitar as coisas que não podemos modificar,
Coragem para modificar aquelas que podemos,
E sabedoria para distinguir umas das outras".

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